dezembro 1995, Revista Máxim

"Olha, só chove lá fora!"

"Mãe, vem ver, hoje só chove lá fora...” Foi assim que o Ricardo, um menino de oito anos, celebrou, efusivo, o primeiro dia em que não choveu dentro da sua casa.
A situação parecia-lhe estranha. Durante oito anos vivera com mais sete irmãos, pai e mãe, num espaço Que nem estatuto de barraca tinha: as telhas eram plásticos velhos, o chão formado por cobertores oferecidos, os tijolos duas varas de uma árvore centenária. Habituara-se a apanhar com a água da chuva em cima do corpo. Agora, o simples facto de chover só na rua era para o Ricardo um momento único na sua vida.
A casa nova do Ricardo foi feita com a ajuda de muitos meninos do concelho e da cidade de Famalicão.
Um dia, o Presidente da Câmara, Agostinho Fernandes, numa daquelas suas visitas pelas terras do concelho, provavelmente mais técnica do que humana, ficou com o coração nas mãos perante a imagem de pobreza que muitos meninos como o Ricardo lhe ofereceram.
O Presidente da Câmara de Famalicão não gostou do que viu. Então, meteu mãos à obra e apoiou, no que pôde, a criação da Associação. Dar as Mãos que tem por objectivo principal o apoio à família, sobretudo às famílias que mais precisam.
Famalicão é uma cidade cheia de histórias de solidariedade escondidas, conta-nos José Luís Bacelar, militar de carreira, coronel de patente, homem que desde os tempos da Academia Militar se habituou a dar as mãos, porque de pés atados ninguém consegue andar.
Nos tempos livres de uma vida de trabalho, este coronel e uma assistente social destacada pela Câmara animam a Associação para que ela possa, de mãos dadas, levar o suor da solidariedade a todos os escondidos da vida.
"A habitação é a principal preocupação da Associação. Não há apoio à família sem se resolver, antes de mais, o problema da falta de uma casa digna", explica-nos José Bacelar.
O Ricardo foi um dos contemplados pela força que muitos gestos simples são capazes de criar. Os pais receberam uma casa, a primeira que a família teve.
A Associação Dar as Mãos é ainda mais pequena que o Ricardo. Só agora começa a dar os primeiros passos. Se alguns são já de gigante, outros são tão pequenos que ainda ninguém viu. Mas já muitos sentiram.
"É que", explica-nos o coronel Bacelar, "quando a ideia da Associação nasceu, foi precisamente porque, em nome individual, tínhamos acorrido já a múltiplas situações de carência, nomeadamente a crianças abandonadas e a pessoas sem abrigo'.
A casa do Ricardo foi a primeira grande acção desta Associação.
"Não tínhamos muitos meios'", conta-nos o Presidente da Dar as Mãos, por isso, "propusemos às crianças de todas as escolas do concelho que nos ajudassem na construção da casa do Ricardo trazendo cada uma o seu tijolo".
O mais importante destas acções, lembra o coronel Bacelar, é tornar as pessoas sensíveis às carências do meio em que vivem, podem não ajudar hoje, ignorar amanhã. Mas acabam por saber que uns dão as mãos. E um dia, eles próprios, vão à procura do uma mão a quem apertar. Afinal, a solidariedade também contagia. Nem sempre os que mais ajudam dão a melhor ajuda. Há pessoas para quem a compra de um tijolo é tão ou mais dispendiosa que a compra de mil tijolos.
Dar as mãos não é uma questão de quantidade. É, segundo José Bacelar, uma questão de coração. E esse todos temos. As batidas variam muito, há os hipertensos e os hipotensos. Mas a todos, sem excepção, o coração bate.
De escola em escola, de Igreja em Igreja, não houve aluno ou menino da catequese que não respondesse à chamada da campanha do tijolo.
Cada um trouxe um tijolo. Os que não tinham hipótese de o arranjar davam em dinheiro a quantia que lhe correspondia.
Assim, tijolo a tijolo, mão a mão, a casa do Ricardo foi tomando forma, Do Ricardo e de mais sete meninos, irmãos do Ricardo.
Durante muitos meses, à "roda de uma coisa tão velha, havia grande rodopio'', porque todos, em Famalicão, quiseram experimentar a solidariedade.
Não era Dezembro mas o Ricardo e a sua família cantaram o Natal mais quente que alguma vez tiveram.
"Mãe, vem ver, hoje só chove lá fora...".